sábado, 29 de setembro de 2012

Camarada Erica Ramos apresenta reflexão Mulheres na disputa por Soberania e Segurança Alimentar no campo


Mulheres na disputa por Soberania e Segurança Alimentar e contribuições para a luta feminista no campo

                                                                                                         Erica Ramos[1]

            Apesar de ser recente o engajamento de mulheres organizadas em movimentos próprios do campo como o MMC e o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB) e organizações feministas, não ocorre o mesmo com a violência a qual elas denunciam. Sua condição de mulher camponesa procura fazer resistência a uma dupla forma de vulnerabilidade ao interseccionar a dominação de gênero e a sofrida pelo campesinato. Pretende-se apresentar o caso específico das mulheres que vêm sua racionalidade ser subjugada e marginalizada tanto pelas instituições sociais que reproduzem o patriarcado, quanto pela a racionalidade científica e econômica marcada pelo capitalismo.

            No âmbito da agricultura, a divisão sexual do trabalho ocorre tal qual no meio urbano como uma separação e hierarquização de atividades entre os indivíduos. Enquanto os homens assumem atividades que estão mais ligadas à produção externa e o comércio como o cuidado com os animais de grande porte, o abate e a lavoura para venda, as tarefas de manutenção do ambiente doméstico são em grande medida ocupadas pelas mulheres, de modo que, por não gerar renda diretamente, o trabalho feminino acaba por ser subvalorizado (MELO, 2006). Isso implica que as mulheres sejam relacionadas ao campo da reprodução social e menos da produção, apesar de ambas as categorias apenas refletirem dimensões da atividade laboral quando mais próximas ou menos dos proventos financeiros

            Mesmo participando da cadeia produtiva, o trabalho doméstico tende a ser visto como um não-trabalho e sim como uma inclinação natural para essas atividades.            Dessa forma, as atividades femininas acabam por recair no campo da natureza “natural”, menos interpretada como uma construção social operada num modo de vida em que os agentes exercem suas atividades a partir de escolhas, contingências e significados para a sua existência.

             Mesmo subvalorizadas, as atividades exercidas pelas mulheres são de extrema importância para a reprodução da família, especialmente em ambientes de extrema pobreza. São elas as principais responsáveis pelo consumo da unidade familiar, assumindo o controle pelos hábitos alimentares da família (PANZUTTI, 2006; PORTELLA e SILVA, 2006). Ainda segundo Menasche et al (2008) a produção para o autoconsumo é atividade preponderantemente feminina além de serem elas as responsáveis pelas trocas dentro da comunidade que possibilitam diversificar o cardápio da unidade familiar e atualizar os vínculos sociais. A construção dos hábitos alimentares são antes pensados, elaborados e significados e não meramente comidos para sanar necessidades físicas e corporais.

            Visto isso, a contribuição dessas mulheres vai muito além da saúde das populações rurais. Relaciona-se, em última instância, à reprodução e à produção de valores e significados culturais em face de um horizonte cultural precedente. Não se trata aqui de excluir a participação de outros atores sociais nos padrões de sociabilidade desenhados, todavia é importante destacar que o trabalho feminino exige esforço teleológico e que a partir daí diferentes símbolos serão construídos em torno da produção e consumo dos alimentos.

            Cabe também enfatizar as mudanças sofridas no espaço, no tempo e no tipo de trabalho exercido pelas mulheres face às alterações provenientes do aprofundamento das relações capitalistas no campo. Analisando a produção algodoeira no Leme-SP, Nilce Panzutti (2006) constata que a forte mecanização do campo promoveu a individualização do trabalho e a redução da das atividades femininas ao espaço doméstico. O homem com o auxílio do trator, da colhedeira entre outros artefatos, prescinde de força-de-trabalho para tocar o cultivo da lavoura.

            Ainda sobre a questão de gênero no campo, Menasche et al pontua que a redução da propriedade e a grande oferta de alimentos no mercado culminaram numa redução do autoconsumo e do trabalho feminino no roçado. Contribuiu ainda para a redução da produção, o desaparecimento dos moinhos coloniais destinados ao preparo dos farináceos (espaço de trabalho tipicamente feminino), bem como a compra de sementes e mudas em detrimento da aquisição no interior da propriedade mediante colheita e secagem das sementes. Ainda outros fatores podem ser destacados como a dificuldade de acesso à água e redução da biodiversidade das florestas.

            Dito isso, argumenta-se que a elevada mecanização do campo ajudou a aumentar a divisão sexual do trabalho e reduziu a importância e o espaço de trabalho da mulher, sendo apontada como uma das causas para a redução maior da população feminina no campo em relação à masculina. Isso reflete uma erosão dos valores simbólicos referentes ao modo de produção/reprodução que garantia o pertencimento comunitário e territorial dos indivíduos.

            A articulação política de mulheres, especialmente a partir de 1980, vem justamente fazer frente à reprodução do patriarcado e ao modelo de desenvolvimento rural que o reduz a produção agrícola. Em que pese o fato de já tentarem incluir nas pautas do Movimento dos Sem Terra (MST), Confederação Nacional dos Trabalhadores (CONTAG), Federação Nacional dos Trabalhadores (FETRAF) entre outros, constituir movimentos especificamente voltados para a questão da mulher rural, permitiu que suas pautas fossem priorizadas. Em especial a década de 2000, além das mulheres já organizadas politicamente no MMC e no MIQCB, ocorrem as sucessivas aparições em manifestações públicas como a Marcha das Margaridas (2000, 2003, 2007 e 2010). Na terceira marcha, dentro das suas reivindicações também é inserida a segurança alimentar e nutricional como um eixo de luta.

            Para Siliprandi (s.d.) tal mobilização busca a afirmação de sua identidade e racionalidade como mulher, articulando-se não só em torno da questão alimentar, apesar de essa ser uma pauta com bastante eco dentro dos movimentos feministas do meio rural. Também passam a organizar-se dentro da Via Campesina, com o MMC em 2000, refletindo uma disputa por soberania alimentar e de desenvolvimento rural, em conjunto com outras categorias identitárias.

            Muito embora, tal grupo social tenha sido amplamente afetado pela modernização agrícola e, consequentemente, pelas mudanças dos hábitos alimentares, o contexto de luta pela soberania e segurança alimentar é uma arena que pode favorecer a sua participação no meio político por ser uma pauta que simbolicamente e culturalmente é ligado a elas. A abertura destes espaços é fundamental para que se possa pensar que modelos de organização produtiva consoantes aos interesses das mulheres.

            Entretanto, essa maior inclinação das mulheres para a questão alimentar não poderia estar novamente as restringindo ao espaço doméstico e do cuidado com a família? Em que pese o fato de ser um campo majoritariamente feminino, a organização  política de mulheres possibilita desestabilizar os antigos papéis de gênero e redesenhar esse modelo de produção familiar respeitando a sua autonomia individual. O orquestramento das lutas em torno da soberania alimentar, contrapondo-se ao processo de modernização conservadora no campo, conduz a um processo no qual a disputa possa se fazer também em outras frentes de interesse como o reconhecimento do espaço da mulher na agricultura familiar. Destaca-se, portanto, a possibilidade de se projetar que papel elas querem assumir e conformar outras formas de racionalidades na construção da soberania alimentar nos distintos territórios.



[1] Assistente Social, Mestranda FUP/UnB, militante do PCB,Base Heron de Alencar/ UnB