Mulheres na disputa por Soberania e Segurança Alimentar e
contribuições para a luta feminista no campo
Apesar de ser recente o engajamento
de mulheres organizadas em movimentos próprios do campo como o MMC e o
Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB) e organizações
feministas, não ocorre o mesmo com a violência a qual elas denunciam. Sua
condição de mulher camponesa procura fazer resistência a uma dupla forma de
vulnerabilidade ao interseccionar a dominação de gênero e a sofrida pelo
campesinato. Pretende-se apresentar o caso específico das mulheres que vêm sua
racionalidade ser subjugada e marginalizada tanto pelas instituições sociais
que reproduzem o patriarcado, quanto pela a racionalidade científica e
econômica marcada pelo capitalismo.
No âmbito da agricultura, a divisão
sexual do trabalho ocorre tal qual no meio urbano como uma separação e
hierarquização de atividades entre os indivíduos. Enquanto os homens assumem
atividades que estão mais ligadas à produção externa e o comércio como o
cuidado com os animais de grande porte, o abate e a lavoura para venda, as tarefas de manutenção do
ambiente doméstico são em grande medida ocupadas pelas mulheres, de modo que,
por não gerar renda diretamente, o trabalho feminino acaba por ser
subvalorizado (MELO, 2006). Isso implica que as mulheres sejam relacionadas ao
campo da reprodução social e menos da produção, apesar de ambas as categorias
apenas refletirem dimensões da atividade laboral quando mais próximas ou menos
dos proventos financeiros
Mesmo
participando da cadeia produtiva, o trabalho doméstico tende a ser visto como
um não-trabalho e sim como uma inclinação natural para essas atividades. Dessa forma, as atividades femininas
acabam por recair no campo da natureza “natural”, menos interpretada como uma
construção social operada num modo de vida em que os agentes exercem suas
atividades a partir de escolhas, contingências e significados para a sua
existência.
Mesmo subvalorizadas, as atividades exercidas
pelas mulheres são de extrema importância para a reprodução da família,
especialmente em ambientes de extrema pobreza. São elas as principais
responsáveis pelo consumo da unidade familiar, assumindo o controle pelos
hábitos alimentares da família (PANZUTTI, 2006; PORTELLA e SILVA, 2006). Ainda
segundo Menasche et al (2008) a produção para o autoconsumo é atividade
preponderantemente feminina além de serem elas as responsáveis pelas trocas
dentro da comunidade que possibilitam diversificar o cardápio da unidade
familiar e atualizar os vínculos sociais. A construção dos hábitos alimentares
são antes pensados, elaborados e significados e não meramente comidos para
sanar necessidades físicas e corporais.
Visto
isso, a contribuição dessas mulheres vai muito além da saúde das populações
rurais. Relaciona-se, em última instância, à reprodução e à produção de valores
e significados culturais em face de um horizonte cultural precedente. Não se
trata aqui de excluir a participação de outros atores sociais nos padrões de
sociabilidade desenhados, todavia é importante destacar que o trabalho feminino
exige esforço teleológico e que a partir daí diferentes símbolos serão
construídos em torno da produção e consumo dos alimentos.
Cabe
também enfatizar as mudanças sofridas no espaço, no tempo e no tipo de trabalho
exercido pelas mulheres face às alterações provenientes do aprofundamento das
relações capitalistas no campo. Analisando a produção algodoeira no Leme-SP,
Nilce Panzutti (2006) constata que a forte mecanização do campo promoveu a
individualização do trabalho e a redução da das atividades femininas ao espaço
doméstico. O homem com o auxílio do trator, da colhedeira entre outros
artefatos, prescinde de força-de-trabalho para tocar o cultivo da lavoura.
Ainda
sobre a questão de gênero no campo, Menasche et al pontua que a redução da
propriedade e a grande oferta de alimentos no mercado culminaram numa redução
do autoconsumo e do trabalho feminino no roçado. Contribuiu ainda para a
redução da produção, o desaparecimento dos moinhos coloniais destinados ao
preparo dos farináceos (espaço de trabalho tipicamente feminino), bem como a
compra de sementes e mudas em detrimento da aquisição no interior da
propriedade mediante colheita e secagem das sementes. Ainda outros fatores
podem ser destacados como a dificuldade de acesso à água e redução da
biodiversidade das florestas.
Dito
isso, argumenta-se que a elevada mecanização do campo ajudou a aumentar a
divisão sexual do trabalho e reduziu a importância e o espaço de trabalho da
mulher, sendo apontada como uma das causas para a redução maior da população
feminina no campo em relação à masculina. Isso reflete uma erosão dos valores
simbólicos referentes ao modo de produção/reprodução que garantia o
pertencimento comunitário e territorial dos indivíduos.
A
articulação política de mulheres, especialmente a partir de 1980, vem
justamente fazer frente à reprodução do patriarcado e ao modelo de
desenvolvimento rural que o reduz a produção agrícola. Em que pese o fato de já
tentarem incluir nas pautas do Movimento dos Sem Terra (MST), Confederação
Nacional dos Trabalhadores (CONTAG), Federação Nacional dos Trabalhadores
(FETRAF) entre outros, constituir movimentos especificamente voltados para a
questão da mulher rural, permitiu que suas pautas fossem priorizadas. Em
especial a década de 2000, além das mulheres já organizadas politicamente no
MMC e no MIQCB, ocorrem as sucessivas aparições em manifestações públicas como
a Marcha das Margaridas (2000, 2003, 2007 e 2010). Na terceira marcha, dentro
das suas reivindicações também é inserida a segurança alimentar e nutricional
como um eixo de luta.
Para
Siliprandi (s.d.) tal mobilização busca a afirmação de sua identidade e
racionalidade como mulher, articulando-se não só em torno da questão alimentar,
apesar de essa ser uma pauta com bastante eco dentro dos movimentos feministas
do meio rural. Também passam a organizar-se dentro da Via Campesina, com o MMC
em 2000, refletindo uma disputa por soberania alimentar e de desenvolvimento
rural, em conjunto com outras categorias identitárias.
Muito
embora, tal grupo social tenha sido amplamente afetado pela modernização agrícola
e, consequentemente, pelas mudanças dos hábitos alimentares, o contexto de luta
pela soberania e segurança alimentar é uma arena que pode favorecer a sua
participação no meio político por ser uma pauta que simbolicamente e
culturalmente é ligado a elas. A abertura destes espaços é fundamental para que
se possa pensar que modelos de organização produtiva consoantes aos interesses
das mulheres.
Entretanto,
essa maior inclinação das mulheres para a questão alimentar não poderia estar
novamente as restringindo ao espaço doméstico e do cuidado com a família? Em
que pese o fato de ser um campo majoritariamente feminino, a organização política de mulheres possibilita
desestabilizar os antigos papéis de gênero e redesenhar esse modelo de produção
familiar respeitando a sua autonomia individual. O orquestramento das lutas em
torno da soberania alimentar, contrapondo-se ao processo de modernização
conservadora no campo, conduz a um processo no qual a disputa possa se fazer
também em outras frentes de interesse como o reconhecimento do espaço da mulher
na agricultura familiar. Destaca-se, portanto, a possibilidade de se projetar
que papel elas querem assumir e conformar outras formas de racionalidades na
construção da soberania alimentar nos distintos territórios.